
Declaração Universal dos Direitos do Homem
Adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948
Artigo 1.º
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
Artigo 18.º
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
Artigo 19.º
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.
Ontem mataram doze pessoas na redacção de um jornal em França. Mais quatro estão hospitalizadas em estado grave e outras sete sofreram ferimentos mais leves. Este jornal, o Charlie Hebdo, era uma publicação satírica conhecida pelos seus cartoons que gozavam com tudo e todos. E quando dizemos gozavam, falamos da sátira levada ao extremo, sem pudor nem preocupação pelo politicamente correcto. Podemos discutir o gosto ou a conveniência dos cartoons do Charlie Hebdo. Não temos o direito de os julgar. Não temos o direito de os censurar.
Mas a par da impressionante onda de solidariedade que se levanta por todo o mundo, representada pela hashtag #JeSuisCharlie, por manifestações pela liberdade de expressão da mais variada índole, outra corrente se desenvolve. A dos cobardes. A daqueles que dizem "gozaram com os muçulmanos, do que estavam à espera? deviam era ter ficado caladinhos" sem perceber a obscenidade da sua afirmação.
Pois é. Realmente, do que esta malta se foi lembrar: exercer despudoradamente um direito fundamental do ser humano! E sem sequer fazer primeiro, sei lá, um inquérito de opinião para saber se alguém podia ser ligeiramente ofendido pelos seus "bonecos"! Estavam mesmo a pedi-las, estes. São como aquelas mulheres que saem à rua de mini-saia e depois vêm queixar-se que são assediadas e até violadas. Do que é que estavam à espera? A bem dizer, se calhar alguns muçulmanos radicais é que têm razão, deviam andar caladinhas e de burka. Agora que eu peguei no argumento e o reduzi ao absurdo talvez estejam a sentir-se desconfortáveis. São inconvenientes, estas coisas da lógica e da argumentação, quando as levamos ao fundo em vez de lhes pegar pela rama e despejar duas ou três pseudo-reflexões no Facebook.
Agora vou explicar-vos um facto da vida. Algures no mundo haverá sempre alguém a fazer e dizer coisas que outro alguém considera ofensivas ou inconvenientes. Neste momento algures no Facebook alguém está a escrever um comentário que vocês vão achar horrível e despropositado. Têm todo o direito de discordar. Têm aliás tanto direito de discordar, como a outra pessoa tem o direito de escrever o que escreveu. É isso a liberdade de expressão. E no momento em que começamos a cercear a liberdade de expressão porque há coisas que são "inconvenientes" isso tem um só nome amigos, e esse nome é CENSURA.
Permitam-me citar Miguel Esteves Cardoso na sua crónica de hoje no Público:
«Os mais perigosos inimigos da liberdade de expressão são pessoas inteligentes e bem-intencionadas que publicamente pedem tratamento especial para a religião islâmica (ou qualquer outra religião) para não "ferir susceptibilidades" ou "fazer provocações". São pessoas liberais que defendem calmamente a protecção das sensibilidades muçulmanas através da violação da liberdade de expressão, por muito civilizada e politicamente correcta que seja a forma de censura que propõem.»
«Os mais perigosos inimigos da liberdade de expressão são pessoas inteligentes e bem-intencionadas que publicamente pedem tratamento especial para a religião islâmica (ou qualquer outra religião) para não "ferir susceptibilidades" ou "fazer provocações". São pessoas liberais que defendem calmamente a protecção das sensibilidades muçulmanas através da violação da liberdade de expressão, por muito civilizada e politicamente correcta que seja a forma de censura que propõem.»
Infelizmente a doença da "inconveniência" tem raízes profundas no nosso Portugal, talvez resquício mal resolvido do "lápis azul" que durante décadas controlou a imprensa e as artes criativas no país. Nos anos 80 tiraram do ar um programa do Herman José por causa de um sketch com a Rainha Santa Isabel que chegou a ser discutido na Assembleia da República. Em 1992 o cartoonista português António publicou uma caricatura do Papa João Paulo II com um preservativo pendurado no nariz, em sátira à posição da Igreja Católica sobre o uso de contraceptivos, e ia caindo o Carmo e a Trindade.
Quanto a estes e muitos outros exemplos, e nomeadamente quanto às caricaturas do Charlie Hebdo que atacavam o extremismo religioso e motivaram o hediondo ataque de ontem, muito se pode dizer e todos temos direito a uma opinião. Sim, até podemos achar de mau gosto. Ofensivo. Despropositado. Mas numa sociedade livre atacam-se argumentos com argumentos. Não se atacam os autores do argumento. Muito menos com disparos de metralhadora.
Porque as balas disparadas ontem não o foram apenas contra uma vintena de membros da redacção do Charlie Hebdo e mais dois polícias. Foram disparadas contra todos os jornalistas do mundo e contra todos os seres humanos que têm a inalienável liberdade de fazer ouvir a sua voz e expressar a sua opinião, por muito inconveniente que ela seja.
E cada pessoa que hoje vier dizer "deviam era ter ficado caladinhos" é mais um que foi atingido pelas balas disparadas ontem em Paris.
Um aplauso para este texto, por realmente reflectir aquilo que eu também penso!
ResponderEliminarObrigada Ana Filipa. Hoje tinha mesmo de escrever isto.
EliminarTanta gente baleada, tanta.
ResponderEliminarE nem percebem. Creio que só quando perecerem, exangues, tomarão consciência do que estão a fazer a si mesmos e ao mundo.
É mesmo isto. Só mesmo isto. Palmas, das fortes, para este texto.
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